BLOG DOS POETAS ALMADENSES

«A poesia é o espelho da cultura de cada país e nela se reflectem os estados de alma, anseios e aspirações... tudo o que diz respeito ao mais íntimo das pessoas, dos povos e da humanidade... que seja dita e cantada, que sirva para conectar para além do espaço das ideologias e dos sistemas, porque A POESIA É, FUNDAMENTALMENTE, UM ESPAÇO DE LIBERDADE.»

sexta-feira, março 23, 2007

A dicção moderna

Do nosso amigo/colaborador, João Alexandre Sartorelli (http://alexsartorelli.blogspot.com), recebemos do Brasil, este texto que hoje vos divulgamos:

«A poesia tradicional prendeu-se a métricas fixas e a solução da rima por herança da fase da poesia oral. Mas da mesma forma que a pintura moderna utiliza elementos de composição da pintura clássica, mas libertou-se da necessidade da representação da realidade e tornou-se realidade, a poesia moderna libertou-se da necessidade de seguir esquemas fixos de versificação. No entanto ela utiliza os mesmos elementos da poesia tradicional, ritmo, métrica, assonância, aliteração, porém sem seguir as formas tradicionais.

O poema é um objeto autônomo e que encerra o sentido em si mesmo, sem referência externa (função poética). Assim a forma tradicional seria uma referência externa. Quando os elementos de poesia são utilizados de forma orgânica, compatível com o conteúdo, teremos uma melhor combinação de forma conteúdo, o que só pode enriquecer o poema moderno.

Acredito que tenha surgido uma dicção moderna, que utiliza um verso que parece prosaico mas não é, há um uso elaborada do ritmo, dos jogos sonoros e da sintaxe. E isto em diversos idiomas, como é o caso de Fernando Pessoa, Paul Celan e Joseph Brodsky. E escolhi um escritor em língua latina e dois em línguas anglo-saxônicos pois creio que este tipo de poesia está ligada à nossa época e repercute nos diferentes idiomas.

Um poema emblemático é Todesfuge, de Celan
Começa com
Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends
wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
wir trinken und trinken

Leite-breu d' aurora nós o bebemos à tarde
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos à noite
bebemos e bebemos
(tradução de Claúdia Cavalcanti)

As palavras são simples, mas a imagem é forte. O ritmo é avassalador, com o uso adequado de sílabas tônicas e átonas. É um texto angustiante, seguidor da sintaxe mas com uma repetição opressiva.
wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes Haar Margarete
er schreibt es und tritt vor das Haus und es blitzen die Sterne er pfeift seine Rüden herbei
er pfeift seine Juden hervor läßt schaufeln ein Grab in der Erde
er befiehlt uns spielt auf nun zum Tanz

cavamos uma cova grande nos ares
Na casa mora um homem que brinca com as serpentes e escreve
ele escreve para a Alemanha quando escurece teus cabelos de ouro Margarete
ele escreve e aparece em frente à casa e brilham as estrelas ele
[assobia e chama seus mastins
ele assobia e chegam seus judeus manda cavar uma cova na terra
ordena-nos agora toquem para dançarmos

Com uma sintaxe simples ele cria um texto solene.
No final
ele atiça seus mastins contra nós dá-nos uma cova no ar
ele brinca com as serpentes e sonha a morte é uma mestra
[d' Alemanha
teus cabelos de ouro Margarete
teus cabelos de cinza Sulamita

er hetzt seine Rüden auf uns er schenkt uns ein Grab in der Luft
er spielt mit den Schlangen und träumet der Tod ist ein Meister aus Deutschland

dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamit

Continua o tom de prosa que não é prosa, uma prosa revirada, duplicada e que se transforma em poesia pois o poeta cria um estranhamento. A frase deixa de ser um referência a algo externo e torna-se poesia, num diálogo com as outras frases.

Na mesma linha e num tom menos extremado temos Joseph Brodsky, poeta russo que também escrevia em inglês. Ele começa quase descritivo.

To my daughter

Give me another life, and I'll be singing
in Caffè Rafaella. Or simply sitting
there. Or standing there, as furniture in the corner,
in case that life is a bit less generous than the former.

PARA A MINHA FILHA

Dai-me outra vida e estarei no Caffè Rafaella
a cantar. Ou estarei sentado a uma mesa,
simplesmente. Ou de pé, como um móvel no corredor,
caso essa vida seja menos generosa que a anterior.

(tradução Carlos Leite)

Na próxima quadra ele muda de registro. Continua prosaico, mas já é uma prosa com jogos de significado (“without caffeine or jazz”, sem jazz nem cafeína, “cracks and pores”,rachas e poros,”in your full flower”, como a tua flor se terá aberto)

Yet partly because no century from now on will ever manage
without caffeine or jazz. I'll sustain this damage,
and through my cracks and pores, varnish and dust all over,
observe you, in twenty years, in your full flower.

Contudo, em parte porque nenhum século daqui em diante
conseguirá passar sem jazz nem cafeína, aguentarei esse desplante,
e pelas minhas rachas e poros, verniz e todo de pó coberto,
observarei, daqui a vinte anos, como a tua flor se terá aberto.

Depois ele retorna ao tom de prosa, claro que mantendo os elementos formais da poesia, como o esqueleto sonoro (bear/around/rather/father/older/larger).

On the whole, bear in mind that I'll be around. Or rather,
that an inanimate object might be your father,
especially if the objects are older than you, or larger.
So keep an eye on them always, for they no doubt will judge you.

De um modo geral, lembra-te de que estou por ali. Ou melhor, que
um objecto inanimado pode ser o teu pai, sobretudo se
os objectos forem mais velhos do que tu, ou maiores. Não
os percas de vista, pois, sem dúvida, te julgarão.

O próprio poema se veicula como tosco, mas é uma referência que reforça a poética,

Love those things anyway, encounter or no encounter.
Besides, you may still remember a silhouette, a contour,
while I'll lose even that, along with the other luggage.
Hence, these somewhat wooden lines in our common language.

Seja como for, ama essas coisas, haja ou não encontro.
Além disso, pode ser que ainda te lembres duma silhueta, dum contorno,
ao passo que eu até isso perderei, juntamente com a restante bagagem.
Daí estes versos, algo toscos, na nossa comum linguagem.

Pessoa começa o poema com versos diretos e vigorosos

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Quando o poema entra em uma fase de reflexão, ele fica mais regular

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Esse é um caminho importante na poesia moderna. O compromisso do poeta não é exatamente com a forma. A forma que ele utiliza deve adequar-se ao conteúdo. Assim temos um verso mais regular em Brodsky, o tema é leve, um metro variável em Pessoa que transmite uma angústia metafísica, e finalmente um metro entre variável e constante que transmite o clima de opressão do poema de Celan.

Todos constroem uma narrativa, mas uma narrativa a serviço de um sentimento do homem acuado em Celan, do homem além de si mesmo em Pessoa, do homem carinhoso em Brodsky. Celan usa uma narrativa circular, de repetição, reiteração. Pessoa é o mestre do ritmo e do significado. Brodsky é mais coloquial que os outros dois, mas isso cabe muito bem.

Os três autores indicam que há um caminho muito rico. O importante é que eles não indicam um modelo rígido que poderia ser uma camisa de força para outros poetas. Pelo contrário, eles apresentam uma maneira original de utilizar a matéria com que são feitos os poemas.»